Estava encostada num poste, à entrada do jardim municipal. Parecia ocupada em acender um cigarro, o torso enrolado para a frente, as mãos retorcendo um invisível rosário. Mais perto vi que era jovem e as mãos, encobertas por uma vasta cabeleira, manipulavam um telemóvel.
Terminada a chamada, enroscou-se sobre si mesma, a cabeça tocando nos joelhos e assim permaneceu imóvel por um tempo. De repente, num vibrante impulso, suspendeu os braços no ar e tombou desamparadamente na areia. Desabou com aquele surdo ruído que é exclusivo da queda dos corpos. O embate de um corpo vivo não obedece às leis da Física. É um suspiro da terra que encerra o nosso pranto inaugural.
Ninguém senão eu se apressou a ajudar a jovem que, no meio da poeira, parecia ter perdido os sentidos. Um mirone comentou à distância: a gaja deve ser epilétrica. Um outro disse: conheço essa moça, deixem-na sozinha, ela está a ser visitada. Debrucei-me, tão incapaz quanto um anjo amnésico.
– Tudo bem? – perguntei, a medo.
De olhos fechados, ergueu um braço, estendeu-me a mão, em gesto nupcial, e murmurou: ainda bem que veio. E apertou-me os dedos com um vigor tão desesperado que escutei as falanges rangendo.
Ajudei-a a regressar àquilo que ela chamou residência. Era um resto de um casebre de zinco. Sem porta, existe casa? Estendeu-se num decrépito sofá. Escutei o mesmo suspiro que acontecera na sua recente queda no jardim público.
– Como se chama? – perguntei.
– Sou Sara.
– O que lhe aconteceu há pouco, no parque?
Nada, eu estava simplesmente a nascer, respondeu de olhos postos no teto. Nasço todos os dias e, assim, trago-a de volta, disse apontando uma fotografia pendurada na parede. Espreitei a imagem. Era uma bela mulher, mestiça, olhos escurecidos pela tristeza, cabelos sobre os ombros como uma cascata de lava.
– A minha mãe – disse quase sem mover os lábios. – Tombei no parque por causa dela. Ou melhor, por causa das mãos.
– Entendo – declarei como se tudo aquilo fizesse sentido.
Segui o seu olhar: na parede oposta, uma outra fotografia exibia duas mãos longas e finas, postas uma sobre a outra. A foto parecia um selo fixando as duas margens de uma parede rasgada pelo tempo.
– São as mãos da sua mãe?
– Essas mãos são a minha mãe – retificou ela, pontuando palavra por palavra.
A moça ergueu-se, acendeu um cigarro e retirou da parede a fotografia com o mesmo cuidado que teria se carregasse no colo uma criatura viva. Depois, voltou a sentar-se com a moldura sobre os joelhos. Foi falando com os olhos postos nos meus braços. Ela estava no ventre, começou por dizer, e a sua mãe todos os dias lhe perguntava se ela queria nascer. O pai ria-se, entre dúvida e culpa. A esposa estava louca. Há mulheres que, quando se lhes incha a barriga, encolhe-se-lhes o cérebro.
– Falas com ela? – ironizava o pai com serena ironia.
– Não é ela, a minha filha tem nome. É Sara. E tem direito a decidir.
Depois, o pai beijava a barriga da esposa, sossegando-lhe o seu medo de se sentir feia e indesejada. O teu corpo é a minha casa, afirmava ele.
Sara usou a saliva para apagar uma beata para depois, com ela ainda fumegando, a voltar a esconder sob as descoloridas almofadas. É assim que durmo, deitada sobre o fumo, suspirou.
– Falava da sua mãe… – A minha voz era quase uma súplica que o relato não fosse interrompido.
No nono mês, a futura Sara sentiu a urgência do parto. Tinha pressa de entrar no meu corpo, foi o que a moça explicou. Naquele momento, porém, a moça ainda não sabia como nascer. Tinha medo. Sentia que lhe faltavam os ombros e que os seus ossos eram feitos de água e barro.
Até que uma tarde, a mãe se apresentou dobrada, as mãos tocando o pátio do hospital. Ela vinha ali para se desluar. É a hora do espinho perfurar a nuvem, comentou o pai que, segundo Sara, usava as piores metáforas sempre que se sentia amedrontado. E começou, para ela, o mais solitário dos desfiles, sem hinos, sem bandas, sem céu nem chão. Apenas um pequeno coração à procura do seu próprio peito, peixe esbracejando no túnel, eterna viagem da água para a carne.
– Era o que me acontecia quando o senhor me apanhou há pouco no parque – disse Sara.
– Não entendo – comentei.
Perguntou-me se sabia dos patinhos recém-nascidos que adotam o primeiro objeto que veem em movimento. Para Sara essa imagem primordial foram as mãos. Ficaram gravadas como se fossem o primeiro gesto do seu próprio corpo.
E a moça avaliou-me os dedos, um por um, como se fossem beatas que ela haveria de fumar. Não há mãos que não sejam bonitas, concluiu. Mesmo as feias se tornam belas sempre que ensaiam um gesto.
No parque, as minhas mãos a tinham recolhido depois da queda. E ela experimentou o seu peso como se fosse a primeira vez. Naquela tarde, Sara voltou a transitar da gravidez para a gravidade.
– Lembro-me da primeira luz – declarou.
Não tinha sido um parto fácil. No momento em que se preparavam para cortar o cordão umbilical, Sara decidiu rebelar-se. No princípio, parecia a amotinada gesticulação dos recém-nascidos. Ela estava ainda cega e dava o seu primeiro suspiro. Era isso que pensava a parteira quando exclamou: vem cheia de vida, esta menina! Depois notaram que os seus gestos tinham um propósito. A bebé segurou o cordão que a ligava à mãe, com aqueles dedos tão pequenos que agarram o Universo inteiro. E o corpinho se enroscou, pernas e braços opondo-se à intenção da parteira. Vá, bebé, deixa-me trabalhar, implorou a mulher, forçando a que o pequeno corpo escorregadio se apartasse do ventre da mãe.
Naquele momento, Sara interrompeu as lembranças. Ajeitou o corpo no fedorento sofá e ficou de olhos parados, fixando a porta que nunca houve.
– Sabe o que sucedeu? – perguntou, depois de longa pausa.
– A sua mãe morreu no parto?
– É o que dizem.
E ficou um tempo de olhos fechados. Pareceu-me que tinha adormecido quando me retirei em respeitoso silêncio. Na rua, enrosquei os dedos uns nos outros com medo de que, se abrisse as mãos, a Vida tombaria a meus pés.
(Crónica publicada na VISÃO 1379 de 8 de agosto)